sem pânico

Existe uma regra de ouro na criação de um bom protagonista, uma afirmação que se destaca em qualquer escola de escrita criativa: ‘Ele deve ser ativo’. Um protagonista eficaz deve possuir objetivos e ambições que constituem elementos essenciais da trama principal, metas que ele busca alcançar até a conclusão da história, seja ela positiva ou negativa. Não importa o gênero ou estilo empregado na narrativa que você esteja escrevendo; a presença de um protagonista bem desenvolvido é crucial para o sucesso da história. Os personagens desempenham um papel fundamental como o motor que impulsiona a trama; são eles que conferem sentido e significado a todos os eventos que se desenrolam no enredo. Cada acontecimento na narrativa deve impactá-los de alguma maneira, mudando suas percepções, valores ou até mesmo seus planos de ação

Então, se sua história parecer desconexa ou composta por uma série de ideias soltas que não comunicam nada ao público, é fundamental revisar os personagens. Acredite, escrever personagens é uma tarefa difícil e, se não estiver sendo um desafio para você criá-los, é bom se certificar de que não esteja faltando material suficiente para desenvolvê-los. Essa falta de profundidade pode resultar em algumas surpresas desagradáveis mais para frente.

Agora, quanto ao ato da criação de um personagem, existe uma relação um tanto paradoxal. É importante ressaltar, acredito, que personagens não são pessoas reais. Eles são uma imitação, um retrato, uma pintura, uma escultura em mármore, uma representação da natureza humana. Essa abordagem é necessária porque, convenhamos, pessoas reais são chatas, aborrecidas e mundanas. De acordo com McKee, em seu livro ‘Story’, personagens assumem o papel de metáforas da complexidade da condição humana, refletidas de forma vívida na trama. Por isso, você não deve levar ao pé da letra aquela menção de que personagens devem se parecer com pessoas reais. Gosto de pensar num desenho hiper-realista, tão realista que parece uma foto. Ainda assim, nossa admiração é pelo fato de ser um desenho; ninguém tem admiração por uma simples foto, mas um desenho que imita uma foto é, de fato, uma obra de arte.

Quanto à complexidade do personagem, temos aqui outro problema. Percebemos dois tipos de equívocos cometidos. O primeiro erro é o famoso personagem raso, aqueles personagens unidimensionais que possuem apenas um traço de personalidade. É o tipo que você encontra na maioria dos filmes de terror slasher. No entanto, como explicar então os personagens de desenho animado? Afinal, eles costumam ser reduzidos a um típico jargão e a um comportamento repetitivo e padronizado. Veja que o equívoco aqui está em confundir superficialidade com simplicidade. Existem inúmeros personagens marcantes, principalmente em desenhos animados, que possuem apenas um único modo operante, mesmo assim são extremamente divertidos. O segredo está no charme e carisma de suas personalidades exageradas, o que os torna instantaneamente reconhecíveis.

Mas para entender melhor isso, precisamos falar do segundo equívoco: o personagem complexo. E por complexo, muitos entendem alguém cheio de dimensões e características, com vários traços de personalidade e blá, blá, blá. No entanto, personagens complexos estão longe de ser um aglomerado de características atoladas numa figura. Frequentemente, vemos nos filmes os roteiristas falharem miseravelmente ao tentar criar personagens complexos que não ressoam com o público. Não conseguem atrair a empatia do espectador e sua sobrecarga de camadas não recebe o tempo ou o espaço adequado para se desenvolver de maneira convincente.

McKee argumenta que complexidade é sinônimo de contradição. Um personagem complexo é aquele que expõe uma contradição. De nada adianta um personagem ter inúmeras facetas se nenhuma delas gerar algum conflito que impulsione suas motivações. Normalmente, gostamos de personagens cruéis e ardilosos porque existe uma tensão entre sua maldade e seus atributos empáticos, atributo esse que pode ser até mesmo um design legal. Essa dualidade intrínseca cativa o público. Então, lembre-se, um personagem bem construído não é apenas uma colcha de retalhos de traços aleatórios, mas uma figura capaz de deixar seu impacto emocional ou intelectual no espectador.

Para exemplificar, pense em Sauron do ‘Senhor dos Anéis’. Sauron é o mal absoluto, uma presença sombria, a face da corrupção. Aqui, não há nenhum desenvolvimento psicológico, emocional ou intelectual do vilão. Não existem nuances, nem conflitos internos; sua ambição é nada mais do que poder. No entanto, as características que ele deixa impressas no público são minimamente cativantes. Sua influência sobre o mundo é complexa, sua natureza abstrata e simbólica, sua força corruptora, e até mesmo sua derrota no fim, representando a queda do mal, compõem uma imagem que fica presa em nossas mentes.

Porém, há um outro ponto a se considerar aqui.

Em 1979, foi lançado o que seria, com certeza, o melhor livro de ficção científica de todos os tempos: ‘O Guia do Mochileiro das Galáxias’, uma adaptação do programa criado por Douglas Adams, apresentado na rádio pela BBC. Nessa história, conhecemos Arthur Dent, definitivamente o pior protagonista de qualquer boa história que se preze. Bem, pelo menos nas típicas convenções ‘protagonísticas’, se me permite o uso dessa palavra.

O que Arthur tem de tão especial assim? Nada, absolutamente nada.

Arthur realmente não é o herói mais memorável da literatura, nem mesmo da ficção científica, mas ele é o protagonista perfeito para ‘O Guia do Mochileiro das Galáxias’. Ele é simplesmente a peça principal no tabuleiro dessa narrativa e, sem ele, o xeque-mate seria em poucos movimentos.

Douglas Adams nos brinda aqui com uma sucessão de acontecimentos tão absurdos, excêntricos e cômicos que, sem o personagem certo para conduzir nossa percepção ao longo da obra, tudo iria parecer apenas uma sucessão de idiotices descompensadas. Para Adams, a vida é um absurdo com o qual lidamos todos os dias.

Para iniciar a história, encontramos Arthur deitado no chão numa tentativa patética de impedir um trator de destruir sua casa, pois uma força maior deseja construir uma rodovia bem naquele lugar, e infelizmente, sua casa está no caminho. Logo em seguida, uma nave alienígena envia uma transmissão à Terra avisando a humanidade que eles terão que destruir o planeta porque alguma força maior deseja construir uma rodovia intergaláctica e, infelizmente, a Terra está bem no caminho. Arthur não tem o que fazer diante do trator, menos ainda diante de uma nave alienígena capaz de explodir um planeta.

Arthur é passivo. É um homem tão comum, mas tão comum que chega a ser excêntrico. Ele não tem coragem, nenhuma habilidade; é completamente desajeitado, não há nada de notável em seu caráter, e suas tentativas de ação costumam todas resultar em fracasso. Diferentemente de personagens como Bilbo Bolseiro, que adquire cada um dos traços necessários para um herói até o fim da jornada, Arthur simplesmente os ignora, uma vez que um copo decente de chá é tudo o que ele deseja. Tudo ao redor dele é tão grande, extraordinário e absurdo que sua normalidade se torna a coisa mais incomum no universo.

Realismo e cinismo são as reações de Arthur à maioria dos eventos. O personagem vive em um estado de confusão durante toda a história; a cada novo elemento que se apresenta, temos um Arthur incrédulo, frustrado e sem ideia do que fazer. Ele não se adapta e está o tempo todo lutando para entender aquele mundo, o que quase sempre não resulta em nada, e ele acaba ainda mais confuso do que antes, restando-lhe apenas aceitar qualquer coisa maluca que surja diante dele. Sua relação com o mundo é desajeitada devido à sua inabilidade de lidar com o que não conhece.

Outra de suas características é sua falta de objetivo. Arthur tem apenas um desejo: não se envolver em nenhuma grande aventura, e sim, continuar em sua zona de conforto, tranquila e rotineira. Por isso, ele vive se lamentando das razões que o levaram, ou melhor, o obrigaram a ter que viajar pela galáxia. Essa falta de objetivo faz dele um ser passivo, sendo arrastado para lá e para cá, de planeta em planeta, do passado para o futuro, apenas fazendo suas observações sarcásticas e irônicas.

É incrível como Arthur Dent é exatamente o oposto de um herói. Ele é o que, de fato, podemos chamar de anti-herói. Uma antítese do convencional, um charme único e original.

Mas se aprendemos que personagens precisam ter características A ou B, por que Arthur Dent funciona tão bem em sua história?

A resposta para isso é que Arthur Dent carrega em si o que talvez seja o principal fator para criação de um personagem: a identificação. ‘O Guia do Mochileiro das Galáxias’ é uma história que, em meio a sua loucura, se torna completamente relacionável.

Identificação é o fator aqui.

É, assim como Arthur, que nos encontramos perdidos em meio a um monte de eventos incontroláveis, sem sentido e absurdos. Diante de surpresas, na sua grande maioria, desagradáveis, ou pelo menos impertinentes. Arthur é uma pessoa normal sem nada de excepcional para oferecer ao mundo. Assim como nós, ele é arrastado de um lado para o outro pelas ambições megalomaníacas de outra pessoa, representada pelo Zaphod, que quer descobrir a resposta para o sentido da vida, do universo e tudo mais. Nossa vida é, em partes, lutar para resolver problemas dos quais nunca pedimos ou procuramos. Estamos quase sempre numa estrada perdidos, pedindo carona e mais carona até o próximo ponto. Nossos objetivos são grandes somente até a página dois, quando eles começam a atingir nosso conforto, e acabamos no cemitério dos pretensiosos.

Arthur é o espelho do homem comum que foi jogado nessa jornada, sem saber de nada, tendo que aprender a lidar com os seus inúmeros desafios. O máximo que ele tem ao seu lado é um guia, uma enciclopédia infinita, tão confusa quanto seu conteúdo, mas que pelo menos lhe explica de forma técnica algumas coisas, lhe garante certas curiosidades e que lhe informa um pouco da historicidade do universo. É o que temos conosco, tantos guias, tantos tutoriais, tantos ensinamentos de como fazer isso ou aquilo, manuais para montar o guarda-roupa, manuais para vencer na vida e superar os nossos dilemas, seja lá o que isso signifique, mas cedo ou tarde, percebemos que entre o manual e a realidade, existe um abismo. Já percebeu como é engraçado que qualquer tutorial no YouTube funciona perfeitamente, apenas no YouTube.

E as pessoas à sua volta, todos excêntricos, parecem lidar de forma fácil com o mundo. Eles parecem estar fazendo planos, realizando coisas, lidando com as dificuldades em pura normalidade.

Esse é o caminho para um bom personagem. Arthur não é humano, porque nenhum humano agiria com tanta frugalidade se estivesse viajando em uma nave capaz de ir para qualquer lugar do universo, mas ele é a representação sublime do ser humano simples. Ele está num ambiente perigoso e insensível em que nada importa, ou sequer procura fazer sentido. É apenas o cosmo e suas causalidades que levam a existência para lá e para cá numa dança sem propósito e nos mantém a sua mercê. A falta de um plano para salvar esse mundo e só querer achar um estado sossegado é o que define o personagem em nós. Arthur é um eco de nossas frustrações e uma fonte inesgotável de humor e sabedoria sobre a condição humana.

Pegamos carona nessa estrada repleta de desafios inesperados, surpresas indesejadas e cheia de incertezas. Só nos resta aproveitar a estranheza da paisagem e as oportunidades que ela nos dá.

Lembre-se que ao criar um personagem, certifique-se de que, por mais simples que ele seja, ele não está apenas numa viagem pela galáxia, mas numa jornada íntima através de nós. Apesar de tantos guias que existem por aí, só você sabe qual é o personagem certo para sua história.

“Story”, de Robert McKee, me ajudou bastante a desenvolver o tema desse artigo. Então, se você deseja entrar nesse mundo da ficção, esse livro é uma leitura altamente recomendável.

“O Guia do Mochileiro das Galáxias” ainda figura como minha ficção científica favorita e é minha recomendação para aqueles que não leram.

Deixe nos comentários o que você acha de tudo isso, seu feedback, e é claro, algum personagem que você se identifique ou goste e os motivos para isso.

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